É grave a situação da pandemia da Covid-19 em todo o mundo. As repercussões sociais e econômicas da disseminação do novo Coronavírus têm revelado a tragédia que é a execução da agenda do neoliberalismo, especialmente nos países ocidentais. EUA, Espanha e Itália possuem o quadro social mais grave da doença que avança em escala geométrica. Após décadas de privatização dos sistemas de saúde, de desregulamentação dos direitos trabalhistas e previdenciários, de esvaziamento orçamentário das políticas de assistência social e de mercadorização da natureza, as populações negras, pobres e periféricas são as mais afetadas pelo avanço da pandemia, em número de contágio, mortes e insegurança alimentar.
Contra a ameaça de colapso dos sistemas de saúde pública, do desemprego em massa, da fome generalizada e da falta de assistência financeira, a maioria das nações tem buscado fortalecer as políticas sociais de Estado voltadas para o atendimento das necessidades básicas dos seus cidadãos. A adoção acertada das medidas de quarentena, distanciamento e isolamento social, indicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter o avanço do novo Coronavírus, traz ainda grandes desafios aos sistemas de seguridade social para a promoção universal dos direitos à alimentação saudável, à saúde, ao trabalho digno e à garantia de renda aos setores mais vulnerabilizados da população, nos meios urbano e rural.
No caso brasileiro, a edição da Emenda Constitucional (EC) n. 95, no ano de 2016, que estabeleceu um teto para os gastos públicos federais pelos próximos 20 anos, prejudicou ainda mais a capacidade do Estado em responder de forma ágil e qualificada às demandas de saúde e assistência social. A aprovação da EC nº 103/2019 que implementou a reforma da previdência, dificultou o acesso já restrito, aos benefícios previdenciários, tornando a aposentadoria uma realidade ainda mais distante e burocrática para as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.
Diante deste cenário, moradores das periferias e favelas, povos dos campos, águas, sertões e florestas têm se organizado e exigido a execução de políticas de proteção social para o enfrentamento dos efeitos mais danosos da pandemia da Covid-19. A aprovação da Lei n. 13.982/2020 que instituiu o auxílio-emergencial no valor de R$ 600 para trabalhadores de baixa renda, em situação de informalidade, desempregados e microempreendedores individuais (ou R$1200 para mulheres provedoras de família monoparental) é um exemplo disso.
Desde a aprovação da lei, até o lançamento do site e do aplicativo para cadastramento dos beneficiários pela Caixa Econômica Federal, no último dia 07 de abril, muita dúvida tem surgido sobre a possibilidade dos pequenos agricultores familiares e dos pescadores artesanais acessarem o auxílio emergencial. Outro questionamento levantado é se a habilitação destas categorias de trabalhadores implicaria na descaracterização da sua condição de segurados especiais para fins previdenciários.
Segundo o que foi informado pela Caixa Econômica Federal em seu site, desde que cumpra os requisitos, trabalhadores rurais e pescadores artesanais, que individualmente ou em regime de economia familiar, maiores de 18 anos, com renda mensal familiar total abaixo de três salários mínimos (R$3.135) ou renda familiar per capita de ½ salário mínimo (R$522,50), não inscritos no CadÚnico e que não sejam titulares de benefícios previdenciários, assistenciais ou do seguro desemprego/seguro defeso, terão direito a receber o valor do auxílio por até três meses. Após a realização do cadastro, os órgãos públicos oficiais farão análise por meio do cruzamento das informações, se os pequenos agricultores e os pescadores artesanais enquadram-se nos critérios para o devido recebimento.
A Constituição Federal de 1988, as leis n. 8.212/1991, n. 8.213/1991, o Decreto n. 3.048/1999 e a Instrução Normativa n.77/2015 do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autorizam os pequenos agricultores familiares e os pescadores artesanais a participarem como beneficiários de programas assistenciais oficiais de governo, sem com isso perder a condição de segurado especial.
A categoria de segurado especial é uma situação-realidade até então autodeclarada pelo agricultor familiar ou pescador artesanal, confirmada com a comprovação do efetivo exercício de atividade rural ou pesqueira, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que de forma descontínua, através das informações contidas nos sistemas de registros oficiais.
Por isso, orientamos que os/as pequenos/as agricultores/as e pescadores/as artesanais estejam sempre com seus dados atualizados, principalmente junto ao INSS e aos demais órgãos públicos voltados para o apoio, fomento e incentivo à agricultura familiar, a exemplo do PRONAF e do SIPRA/INCRA.
É de fundamental importância que pescadores/as, marisqueiras, assentados/as e acampados/as de reforma agrária, posseiros/as, atingidos/as por barragens, pequenos/as proprietários/as rurais guardem sempre os documentos aptos a provar materialmente a sua condição de segurado especial, durante cada ano de exercício profissional, a exemplo dos contratos de arrendamento, parceria, notas fiscais, blocos de registros da produção, guias de recolhimento da contribuição previdenciária decorrentes da comercialização da produção, a Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP), dentre outros, conforme estabelecem os artigos 106 da Lei nº 8.213/1991, 47 e 54 da Instrução Normativa nº 77/2015/INSS. Esses documentos serão utilizados de forma complementar em casos de divergências entre as informações constantes na autodeclaração ou posteriormente com os dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS).
Inserida na política de Assistência Social, a Lei 13.982/2020 cria um benefício temporário para amenizar os efeitos mais críticos da calamidade pública decorrente do novo coronavírus, destinados aos grupos sociais em situação de extrema vulnerabilidade social, seja no campo ou nas cidades. No dia 16 de abril deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o texto base do Projeto de Lei 873/2020, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues, que prevê a ampliação da concessão do auxílio emergencial para outras categorias de trabalhadores, dentre elas, de forma expressa, para os agricultores familiares e os pescadores artesanais. O plenário da Câmara segue em votação das emendas apresentadas pelos parlamentares e posteriormente a lei seguirá para sanção presidencial.
Até o novo instrumento legal entrar em vigência, interpretar a Lei 13.982/2020 ou atribuir sua aplicação no sentido de penalizar ou restringir os direitos previdenciários dos segurados especiais não encontra qualquer respaldo jurídico, numa ordem que se pretende democrática e compromissada com o bem-estar e a justiça social.
Assinam esta nota:
- Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR)
- Coletivo Antônia Flor (CAF)
- Comissão Pastoral da Terra (CPT)
- Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
- Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
- Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
- Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
- Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
- Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
- Pastoral da Juventude Rural (PJR)
- Teia dos Povos
- Terra de Direitos
- Via Campesina Brasil
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