Instrumentalizar as comunidades com os conhecimentos técnicos e políticos necessários sobre o Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, estabelecido na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, como metodologia de defesa e efetivação dos seus direitos sociais, étnicos, culturais, territoriais e ambientais. Esse é o objetivo do Ciclo de Formação sobre Protocolos de Consulta, ação formativa realizada pela Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR/BA), Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) e Articulação Nacional das Pescadoras, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
A iniciativa conta com cinco encontros virtuais de formação realizados entre os meses de junho e julho, com o suporte de materiais didáticos e exercícios que visam subsidiar a construção de um plano de ação voltado à elaboração dos Protocolos de Consulta Prévia para comunidades quilombolas e pesqueiras da região Metropolitana de Salvador, do Recôncavo e do Baixo Sul da Bahia.
Layza Queiroz, assessora jurídica popular e coordenadora do processo formativo, explica o que significa esse direito previsto na Convenção 169 da OIT: “Quando existe uma medida legislativa ou administrativa que pode atingir um território tradicional, os povos e comunidades tradicionais devem ser consultados antes e essa consulta deve obedecer um procedimento: ela deve ser prévia, livre, de boa-fé e informada. Ou seja, é direito dos povos participar, a partir de seus costumes, modos e tradições, desse processo de decisão sobre o empreendimento que o afetará”.
Compartilhando saberes e desafios
A formação também é momento de troca com comunidades tradicionais que já vivenciaram o processo de construção de protocolos de consulta. Do Território Quilombola Águas do Velho Chico, em Orocó, no Pernambuco, o advogado quilombola Jeferson Pereira, que participou da construção de protocolos de consulta em diversos estados do Brasil, a exemplo de Brumadinho (MG), comentou sobre a importância das comunidades se apropriarem cada vez mais desse instrumento. “Acho bastante significativo que as comunidades saibam que o Protocolo de Consulta não se trata apenas de uma ferramenta de enfrentamento aos grandes empreendimentos, mas também uma via de fortalecimento da organização e autonomia das comunidades frente ao estado”, comentou.
“Nada para nós, sem nós!” Dessa forma, Vanuza Cardoso, liderança espiritual, graduanda em ciências sociais pela UFPA e ativista do movimento em defesa dos territórios tradicionais, trouxe o relato da experiência de construção do Protocolo de Consulta da comunidade de Abacatal, em Ananindeua, no Pará. Ela conta que ao longo do processo, que foi iniciado ainda em 2017 e durou cerca de um ano, foi muito importante contar com a parceria de ongs, associações e algumas entidades governamentais, como é o caso do Ministério Público. Vanuza compartilhou também que uma das metodologias empregadas foi a realização de oficinas para apresentação do contexto do protocolo e a sensibilização da comunidade para a sua importância.
“O Protocolo de Consulta deve ser o livro de cabeceira das comunidades, quem quer se utilizar do território de boa-fé, deve e precisa consultar as comunidades. É também uma forma de dar um não às violações e ao poder hegemônico do Estado A construção não é fácil, mas é possível e a comunidade de Abacatal é prova disso. Nós temos avançado na garantia de direitos a partir do protocolo. Todas as comunidades têm autonomia e legitimidade para a sua construção”, sinalizou Vanuza.
A chegada intempestiva de empresas para os estudos da construção da barragem São Luiz do Tapajós, no Pará, foi o impulso para que a comunidade de Pimental, no Município de Trairão (PA), se organizasse em torno da construção do seu protocolo de consulta. É o que conta Luvia Lima, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que participou do processo. Ela entende o protocolo como uma ferramenta de luta. “Esse encontro foi importante para passar a experiência de Pimental e perceber as semelhanças com outros relatos. As histórias das comunidades se entrelaçam, porque a grande maioria sempre está sendo sondada pelas grandes empresas”, explicou.
A cursista Luciana Santos, da comunidade Dom João, em São Francisco do Conde, no Recôncavo da Bahia, conta que sua comunidade foi dividida em um processo de reassentamento involuntário e que teve imediata identificação ao ouvir os relatos de outras comunidades. Luciana explica que no primeiro encontro saiu com as ideias ainda no campo da teoria. “Achei esse segundo encontro mais dinâmico e consegui entender de forma mais clara o que é o protocolo de consulta. Já havia lido sobre, mas a aula abriu um leque de possibilidades. O próprio ato de ouvir o relato de alguém de uma comunidade, me remeteu a uma dor que meus antepassados vivenciaram todas às vezes que tiveram que batalhar para manter seus territórios. Penso que me informando, posso instruir as pessoas da minha comunidade”.
Ilustração de Gilmar Santos
CONTEXTO - As comunidades tradicionais pesqueiras da Região Metropolitana de Salvador, do Recôncavo e do Baixo Sul da Bahia, que participam do processo formativo, vivem um processo de insegurança jurídica no que tange o reconhecimento e regularização de seus territórios. Apesar da pesca e mariscagem serem formas de vida tradicionais, não há uma normativa que preveja a regularização de seus territórios que, nesse caso, inclui os mares, ilhas costeiras, manguezais entre outras áreas utilizadas na atividade da pesca e que compõem o imaginário simbólico das comunidades.
Desde 2012, o MPP tem se mobilizado, a nível nacional, através da Campanha de Regularização dos Territórios Pesqueiros para propor um projeto de lei de iniciativa popular que reconheça os territórios tradicionais pesqueiros, em um sinal de resistência a inoperância e descaso do Estado com essas comunidades.
As regiões Recôncavo e Baixo Sul da Bahia tem vivenciado uma série de transformações socioeconômicas gerando impactos de diferentes ordens, tanto no que se refere aos danos ambientais, quanto nas violações aos direitos de comunidades tradicionais pesqueiras e quilombolas, em especial ao direito de terem seus territórios regularizados. A atuação do Estado neste processo tem se dado de duas formas. Primeiramente, os órgãos estatais têm desempenhado papel fundamental de financiar e viabilizar a instalação destas empresas e grandes projetos. Por outro lado, o Estado tem majorado os impactos negativos causados por estas instalações ao agir de forma extremamente morosa na tarefa de implementar e dar validade aos marcos legais internacionais tanto na garantia ao direito de titulação de seus territórios como na realização de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé.
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