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Entidades pedem audiência à CIDH sobre violência contra comunidades de fundo e fecho de pasto


No dia 12 de dezembro, diferentes entidades e associações comunitárias solicitaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a realização de Audiência Temática sobre as graves e crescentes violações de direitos de comunidades rurais tradicionais de Fundo e Fechos de Pasto no estado da Bahia. A Audiência solicitada deve acontecer durante o 186o Período de Sessões da CIDH, de 6 a 10 de março de 2023, com fundamento no artigo 62 do órgão, mais especificamente, na modalidade de “(...) informação de caráter geral ou particular relacionada com os direitos humanos em um ou mais Estados membros da Organização”.

Solicitada pela Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR), Articulação Estadual de comunidades de Fundos e Fechos de Pasto, Articulação Estadual de Fundos e Fechos de Pasto da Bahia, Coletivo de Fechos de Pasto do Oeste da Bahia, Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e pela Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA/TO), a audiência tem como objetivo apresentar e discutir as violências cometidas contra comunidades tradicionais na fronteira agrícola da soja no oeste da Bahia, em contexto de forte expansão do desmatamento, apropriação ilegal de terras de uso comum das comunidades, secamento de nascentes e rios, e violência contra lideranças comunitárias organizadas em associações que resistem a esse processo.

A Audiência Temática se justifica na medida em que o Estado brasileiro está obrigado pela Constituição e tratados internacionais, especialmente a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), a reconhecer os direitos territoriais destas comunidades, demarcando e titulando suas terras. No entanto, há 22 anos, nenhuma comunidade obteve esse direito, embora as reivindicações sejam frequentes, e o cenário de perda de terras e violência contra pessoas, além do desmatamento, cresce de modo exponencial nos últimos 20 anos. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são omissos ou cúmplices da apropriação ilegal destas terras por grandes empresas do agronegócio, nacionais e transnacionais, que fazem forte lobby para inviabilização da demarcação e apagamento destas comunidades.

Campo minado Desde setembro a violência recrudesce contra comunidades de Fundo e Fecho de Pasto na região de Correntina e Santa Maria da Vitória, no oeste baiano. Diante dos indícios e, por fim, da concretização da derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, diversas violências sucederam-se nestes territórios, entre elas ameaças de morte, disparo de tiros, abertura de trincheiras na estrada, destruição de ranchos, pontes e cercas, além de veredas queimadas, em novas ofensivas realizadas a mando de fazendeiros. A disputa se dá por áreas de vegetação nativa do Cerrado, repleta de veredas com nascentes conservadas pelas comunidades que há mais de dois séculos se estabeleceram na região.

Trata-se de cinco áreas comunais de Fundo e Fecho de Pasto ameaçadas, estas denominadas Capão do Modesto; Porcos, Guará e Pombas; Cupim; Vereda da Felicidade e Bois, Arriba e Abaixo, que abrangem aproximadamente 25 comunidades de ambos os municípios. Todas essas áreas possuem uso comunal e tradicional ao longo de mais de 300 anos, por aproximadamente 500 famílias que criam seus animais soltos em áreas nativas de Cerrado conservadas e sobrevivem do extrativismo e da agricultura de subsistência.

Os conflitos na região já acontecem desde a década de 70, no entanto, se agravam a cada ano, principalmente com o avanço do agronegócio nestas áreas de uso comunal das comunidades tradicionais. De acordo com a recente série de reportagens publicadas pelo projeto Meus Sertões em parceria com a CPT Bahia, o objetivo dos empresários é tomar as terras ainda intactas do Cerrado para cumprir o Código Florestal, que exige reservas legais equivalentes a 20% dos latifúndios, onde se plantam, principalmente, soja e algodão. A lei exige que a reserva seja do mesmo bioma destruído, mas não obriga que ela esteja inserida na mesma fazenda.

Durante os últimos 90 dias, as comunidades tradicionais e organizações têm feito inúmeras denúncias junto aos órgãos competentes do Estado da Bahia, porém, a morosidade tem provocado danos e agravos na situação. No dia 28 de setembro, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado encaminhou um requerimento ao governador Rui Costa (PT-BA) e a outras oito autoridades, entre elas secretários estaduais de Segurança Pública, Desenvolvimento Rural, Justiça e Direitos Humanos, Promoção da Igualdade Racial, a delegada geral da Polícia Civil, o chefe da Casa Militar da Bahia, a delegada responsável pelo Grupo Especial de Mediação e Acompanhamento de Conflitos Agrários e Urbanos (Gemacau) e a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA).

No documento consta que, entre os dias 10 e 18 de setembro, 18 homens com armas de diversos calibres formam uma milícia rural que destruiu casas de abrigo e ranchos do Fecho do Cupim. Informa ainda que um dos fecheiros, membro da comunidade do Capão do Modesto, foi interceptado por homens armados no dia 26 de setembro, na estrada de ligação entre a sede do município ao povoado.

Violência, destruição e ameaças

Em 13 de outubro, seguindo a tradição secular em épocas de seca, um fecheiro saiu de casa no início da madrugada para levar 50 cabeças de gado para o fecho de pasto e foi abordado por cinco homens armados. Um deles começou a xingá-lo, deu um tiro para o alto e mandou ele tirar os animais dali. Das cinco dezenas de animais que levou para o pasto, só conseguiu voltar dois para casa. Os demais caíram pelo caminho, fracos, ou se dispersaram no Cerrado. “O criminoso mandou eu levar uma mensagem para os presidentes das associações de fundo e fecho de pasto. Falou que onde ele estava tinha dono e quem mandava ali era ele e seus comparsas. Depois disse para eu ‘vazar’” – contou. Novos episódios de violência se repetiram no Capão do Modesto logo no início de novembro, ocasião em que dois idosos voltavam da procura de dez cabeças de gado que haviam soltado há alguns dias. Na oportunidade testemunharam um homem, armado, cortando o arame de uma cerca instalada para os animais da comunidade não fugirem. Ao se aproximarem, o jagunço disse aos idosos que iria matar os animais e seus donos caso os bois não fossem retirados do local, e arremessou um pedaço de madeira contra os fecheiros, que conseguiram desviar. No mesmo mês, imagens de munições de escopetas e de revólveres exaltando o partido de Bolsonaro, que tem como número 22, viralizaram na internet. Os milicianos rurais, de acordo com a denúncia, estariam escondidos na Fazenda Santa Tereza III, cuja área é de 3.093 hectares, segundo informações públicas do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (INEMA). No requerimento protocolado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado são apontadas a Fazenda Santa Tereza, a Fazenda Bandeirantes, as empresas Agrícola Xingu e Sementes Talismã como protagonistas dos conflitos contra as comunidades tradicionais, além do Estado da Bahia. Até hoje nenhuma providência efetiva foi tomada para acabar com os conflitos e o estado se mantém omisso diante da gravidade dos fatos.

As organizações em defesa dos fecheiros ressaltam que os gerais, áreas de vegetação nativa, são protegidas há pelo menos sete gerações e constituem importantes áreas de recarga do aquífero Urucuia, incluindo nove riachos e veredas. Somente neste trecho dos rios Correntina e Santo Antônio estão a Vereda da Felicidade, a Vereda da Pedra, a Vereda do Morrinhos, a Vereda da Onça, a Vereda do Cabresto, a Vereda do Cupim, a Vereda de Porcos, a Vereda de Guará e a Vereda de Pombas, sendo que essas últimas já se tornaram intermitentes, ou seja, só possuem água no período chuvoso. O avanço do agronegócio na região, principalmente para o plantio de soja e algodão, faz com que os fazendeiros desmatem totalmente as suas propriedades rurais e avancem sobre terras públicas devolutas conservadas por comunidades tradicionais para constituírem as reservas. O desmatamento chegou na Cabeceira da Onça - importante cabeceira afluente do rio Correntina, local de maior suporte de água do território, e os fecheiros temem a morte por completo dessa nascente e de outras no entorno. No dia 16 de setembro deste ano, o licenciamento liberado pelo governo da Bahia para os donos da Fazenda Santa Tereza III, onde a reserva está localizada, envolve 2.226,9 hectares. Destes, cerca de 1300 hectares já foram suprimidos, exatamente onde estão as nascentes e veredas, afluentes do rio Correntina. Enquanto o governo e instituições públicas seguem omissos e coniventes com a violência nos territórios de Fundos e Fechos de Pasto, o desmatamento segue destruindo vários quilômetros de vegetação nativa de Cerrado e os pistoleiros continuam aterrorizando as famílias com o intuito de consumar a apropriação de terras conservadas antes da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Estes territórios são fundamentais para a conservação dos Cerrados e das águas, da produção de alimentos saudáveis e da manutenção de modos de vida, cultura e tradição seculares destas comunidades, que são mantenedoras e geradoras da vida.


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