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Fecho de Pasto do Oeste da Bahia derruba processo judicial de quase 20 anos e mantém a posse do território tradicional

Uma série de irregularidades, violações de direitos e inobservância ao devido processo legal formam uma trama que por quase 20 anos favoreceu empresa do agronegócio


Desde criança, Isaurino Filho, 50 anos, habita o território tradicional de Morrinhos, no Oeste da Bahia. Além da imagem do pai na lida com os animais no fecho de pasto, nas suas lembranças mais vívidas está também um conflito que há mais de quinze anos tira o sossego da comunidade. O ano era 2007, quando, após assédio de empreendimentos no território e um histórico de violências sistemáticas, as comunidades de Fundos e Fechos de Pasto de Morrinhos, Entre Morros à Gado Bravo, no Oeste da Bahia, por meio da sua associação, iniciaram uma longa batalha judicial pelo direito à posse das terras ocupadas tradicionalmente há mais de dois séculos. No último dia 26 de agosto de 2024, quase 20 anos depois, um novo capítulo dessa história foi escrito. Devido a uma série de irregularidades processuais, o litígio que já se arrastava há quase duas décadas foi integralmente anulado, garantindo a posse do território tradicional à comunidade.

Comunidade do Quincão - Fecho Entre Morros - Imagens cedidas pela comunidade


Vícios processuais, ausência do Ministério Público, apelação ignorada por 14 anos,  juiz afastado por histórico de venda de sentenças, entre outras anomalias jurídicas, culminaram na “nulidade absoluta do processo” conforme apontado no acórdão publicado pelo TJBA. A decisão se deu, em especial, devido à identificação da ausência de intervenção do Ministério Público durante todo o processo legal; o próprio MP também interpôs Apelação irresignada com a sentença que improcedeu os pleitos da Associação Comunitária, para evidenciar a aberração processual. Isto porque, o art. 82, III do vigente à época Código do Processo Civil/73 e atual art.178, III, do CPC/2015 prevê a intimação obrigatória do Ministério Público para intervir como fiscal da ordem jurídica nos processos que envolvessem, dentre outras hipóteses, litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. 


A decisão vem quatro meses depois de o Ministro do STF Flávio Dino deferir medida cautelar que tornava inválida a tentativa de reintegração de posse do território tradicional, em mais uma investida truculenta que ocorreu no local no dia 04 de abril deste ano. O pedido de reintegração de posse visava fazer cumprir a sentença,  proferida há 14 anos,  que compreendia que  a posse do território era usufruída pelo empreendimento Guiraponga. No entanto, para se fazer cumprir essa sentença uma série de ilegalidades foram cometidas, entre as mais graves, foi o fato de que o juiz ignorou apelação interposta pela Associação Comunitária desde o ano de 2010.


Em abril, os territórios de uso coletivo das comunidades foram violados por prepostos de fazendeiros do agronegócio. A ação, que destruiu as benfeitorias das comunidades e de um fecho vizinho, foi realizada pela Polícia Militar de Coribe, em cumprimento de um mandado judicial de reintegração de posse. Além dos excessos cometidos na operação, a Casa Militar não foi informada sobre a reintegração. “Recepcionamos de forma bastante surpresa, uma decisão proferida em um sábado, de uma demanda judicial com mais de 14 (quatorze) anos parados, determinando a reintegração de posse de uma empresa que é Ré nos autos do processo, mesmo diante de vasto conjunto probatório em favor das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, comprovada turbação realizada pela empresa Guiraponga e comprovado o requisito obrigatório da possessória, tão somente em favor da Associação Comunitária. É desarrazoado e totalmente injusto garantir o prosseguimento de um de litígio rural, eivado de vícios, nulidades e ausente a intervenção do Ministério Público. Grande vitória aos povos e comunidades tradicionais do Oeste, ficamos contentes com a decisão correta e coerente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia”, comentou Lays Franco, coordenadora e assessora jurídica da AATR. 


      Comunidade do Quincão - Fecho Entre Morros - Imagens cedidas pela comunidade


A empresa que se autodeclara proprietária do território tradicional, trata-se da Guiraponga Agropecuária LTDA, empreendimento que tem como umas das principais atividades a cultura do eucalipto, protagonista também, de inúmeras ilegalidades cometidas contra comunidades da região. A Guiraponga LTDA figura na lista de empreendimentos condenados pelo Tribunal Permanente dos Povos pelo crime de ecocídio contra o Cerrado e genocídio.


O advogado popular e associado da AATR, Américo Barbosa, contou como foi o processo que culminou nesta decisão. “Apresentamos uma Reclamação Constitucional no Supremo que foi distribuída ao Ministro Flávio Dino. A ideia da reclamação era denunciar  que o juiz de Correntina violou decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828. Na ADPF 828, proposta no contexto da pandemia da COVID 19, foi requerida a suspensão dos despejos, durante o estado de emergência de saúde pública. No caso da decisão do juiz de Correntina não foram adotadas essas medidas. Por isso, a decisão foi cassada pelo STF”, explicou. 


Legado jurídico. Vera Regina, presente! 


A Associação Comunitária de defesa do Meio Ambiente dos Criadores do Fecho de Morrinho, Entre Morros e Gado Bravo, que tem o título de utilidade pública municipal, ingressou em 2007 com uma ação contra o empreendimento Guiraponga Agropecuária S.A, devido às inúmeras irregularidades e violências cometidas por empreendimentos que assediavam as comunidades da região. Sobre a importância dessa decisão, Isaurino Filho fez questão de salientar o trabalho de anos que foi desenvolvido pela advocacia popular nesse caso. Destacou, em especial, a atuação da advogada popular e associada da AATR, Vera Regina, que ancestralizou em janeiro de 2023 e que à época atuava na região do Oeste da Bahia. Ao longo desses quase 20 anos, diversos/as advogados/as populares estiveram contribuindo para que o processo não caísse no esquecimento.


No entanto, Isaurino guarda ressalvas sobre a decisão: “Esse caso tem uma história processual e o trabalho de muitas mãos, me lembro muito da atuação de Vera Regina. Sabemos que, embora seja trânsito julgado, o território ainda está sob ameaça uma vez que existem várias sobreposições originadas por casos de grilagem, com diversos supostos “donos” do território, mas temos que manter a esperança e agora esperar que o poder público atue em favor da comunidade”, salientou. 


Passos que vem de longe 


O território, cuja ocupação tradicional remonta há mais de 200 anos, já foi reconhecido e delimitado como Área de Fecho de Pasto pela Superintendência de Desenvolvimento Agrário (SDA), órgão gestor das terras públicas do Estado da Bahia. Utilizado historicamente pela Comunidade do Quincão, o chamado Fecho Entre Morros também foi devidamente certificado pela Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) pela Portaria nº 30, publicada no Diário Oficial do Estado em 16 de julho de 2015. 


No entanto, para além dos reconhecimentos dentro da institucionalidade, o mais importante para a comunidade é o autorreconhecimento e o senso de pertencimento. Isaurino lembra que a noção de família no território não se restringe ao núcleo familiar limitado por laços de parentesco. “Isso aqui para a gente não é só um território, quando falamos em família, falamos de toda a comunidade. Foi subindo o morro com o cruzeiro (cruz de madeira, símbolo de resistência), no aniversário de 70 anos do meu pai, que tive ainda mais certeza que o que estamos defendendo aqui é muito maior do que nós mesmos”, finalizou. 






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