Além das atividades finais da formação em justiça criminal e direitos humanos, o momento também foi dedicado a atividades de autocuidado e bem-estar
“Eu pego cadeia com meu marido há oito anos.” Não, essa pessoa não está presa, mas é como se estivesse. Esses e outros relatos compuseram a atividade final de formação do Projeto Liberta, realizada nos dias 4 e 5 de junho, que teve como objetivo realizar a última atividade do ciclo e a formatura do curso de formação política interseccional em Justiça Criminal e Direitos Humanos de familiares de pessoas em privação de liberdade. A ação, que é uma iniciativa da AATR em parceria com o Fundo Brasil de Direitos Humanos, ancorada na Educação Jurídica Popular, é realizada com o Coletivo de Familiares de Pessoas Privadas e Liberdade vinculadas à Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia. Além da solenidade de formatura que encerrou o ciclo de formação, iniciado em dezembro de 2020, as participantes também tiveram momentos de autocuidado e bem-estar.
A frase que abrimos essa matéria é de uma familiar de uma pessoa encarcerada pelo Estado e evidencia a violação do princípio de individualização da pena, que recomenda, entre outras questões, o fato de que as pessoas que têm parentes em situação de cárcere não podem ser penalizadas e criminalizadas por tabela. Infelizmente não é o que acontece, revistas vexatórias, inclusive de crianças, preconceitos, tratamento julgador e desumano são as condições as quais familiares de pessoas encarceradas enfrentam no seu dia a dia. Daí a necessidade de que estejam munidas de informações que contribuam para o reconhecimento e acionamento cada vez mais qualificado dos seus direitos.
Outra questão que faz com que os familiares de pessoas encarceradas cumpram pena por tabela é a constante necessidade de prover à pessoa encarcerada itens de sobrevivência básicos que não são providos pelo estado, como de higiene pessoal, alimentação, roupas, entre outros. Retirar qualquer possibilidade de demonstração de afeto e intimidade também parece ser uma prática de desumanização enraizada nas instituições do sistema prisional. O bolo de aniversário que nunca chegou, ou chegou destruído, a comida remexida e jogada quase inteiramente fora, a mudança constante de regras é comum no dia a dia de quem enfrenta fila às 4h da manhã para visitar um parente em situação de cárcere.
Uma jornada de muitas trocas
Durante o ciclo, as cursistas tiverem acesso a conteúdos teórico-metodológicos que as apoiarão no enfrentamento à relação constante com as instituições do sistema prisional. O primeiro encontro, que aconteceu em dezembro de 2020, foi dedicado à temas e atividades destinados a analisar como o Estado se organiza para prender pessoas, o segundo encontro, que aconteceu em fevereiro de 2021, teve como mote trazer mais informações sobre prisão em flagrante e audiência de custódia e as suas especificidades, bem como quais são os dispositivos legais e instituições que podem ser acionadas pelos familiares no momento de prisão de um familiar.
Já o terceiro encontro foi dedicado ao processo penal, tendo como temas: intimação, defesa, acusação, sentença, recurso, habeas corpus, entre outras abordagens. Além dos conteúdos mais pragmáticos, escolhidos pelas próprias cursistas, as trocas de experiências promovidas durante as atividades basearam a perspectiva circular de aprendizado mútuo, tendo em vista que a noção de ter pessoas que compartilham dos mesmos desafios pode tornar a jornada menos árdua.
Conhecimento e acolhimento. Essas duas palavras resumem para Elaine Paixão, articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia, a importância da jornada. “Essa formação, que promoveu encontros com familiares de diversas cidades, foi de suma importância, porque abordou temas que muitas vezes não temos acesso na nossa vida escolar. As mulheres se sentiram abraçadas e acolhidas, além das informações, por exemplo, sobre a possibilidade da construção de habeas corpus e diversas outras ferramentas que trouxeram autonomia sobre como lidar com o projeto de encarceramento do estado”, comentou.
Autocuidado e bem-estar como ferramentas de emancipação
Embora a situação de uma pessoa que tem familiar sob a custódia do estado seja de vigilância constante, o momento também foi de celebração com a solenidade formatura das participantes, que receberam certificados e momentos de autocuidado e lazer. As mulheres participaram de atividades de relaxamento, com o uso de saberes ancestrais de folhas curativas, bem como terapia por meio de essências e florais. “Após essas atividades de relaxamento, me sinto mais fortalecida para encarar a vida”, relatou uma cursista. As atividades foram realizadas em parceria com a Rede Tecelãs do Cuidado.
E se fosse eu que estivesse presa?
"O projeto Liberta foi gestado por diversas mulheres que passaram e compõem a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais na Bahia (AATR). Inicialmente, destinou-se à aplicação da Educação Jurídica Popular no Conjunto Penal Feminino de Salvador. Porém, outras mulheres cruzaram o caminho da associação e nos fizeram perceber que elas também estavam presas à situação carcerária de seus filhos, companheiros e irmãos. Neste sentido, o Liberta se tornou um espaço de encontro e construção coletiva do fortalecimento de mulheres negras, que embora não seja permanente, tem seus impactos alastrados no tempo", enfatizou Adriane Ribeiro, advogada popular e associada da AATR.
Confira também o infográfico "Direito na Execução Penal" produzido ao longo da formação, e que traz um compilado dos direitos que devem ser garantidos dentro do Sistema Prisional.
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