Situação crítica do Aquífero Urucuia é reflexo da política indiscriminada de concessões de autorizações de supressão de vegetação (ASV) e outorgas para captação de água no Oeste
Uma bomba-relógio do ponto de vista fundiário e ambiental. Assim, pesquisadores/as classificam a situação do oeste baiano no estudo “Na fronteira da (i) legalidade: Desmatamento e grilagem no Matopiba” , publicado pela Associação dos Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR) e a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, com a contribuição do IFBaiano (Campus Valença/BA). A pesquisa faz a análise de quatro casos da fronteira agrícola do Matopiba, composta pela região de Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que ilustram a relação entre desmatamento e grilagem (apropriação ilegal de terras) e violações contra povos e comunidades tradicionais.
As principais áreas de recarga do aquífero Urucuia, um dos maiores aquíferos do país, coincidem com as áreas das chapadas desmatadas pelo agronegócio e pela intensa captação de água por meio de pivôs centrais, em geral utilizados para irrigação . Como consequência, as comunidades rurais da bacia do Corrente há décadas vêm registrando o desaparecimento de nascentes. “A migração de nascentes tem se tornado também um fenômeno comum. O Rio Santo Antônio teve um recuo de 37,7 km da sua nascente original. A exemplo do fecho de pasto de Vereda da Felicidade, no qual houve recuo das nascentes de pelo menos cinco riachos”.
Esses desmatamentos e outorgas de água, em grande parte, foram autorizados pelo órgão ambiental (Inema), embora sem critérios transparentes e consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais atingidos – ilegais portanto. Ilegais também porque estão sendo concedidas, em grande medida, a empreendimentos do agronegócio estabelecidos por meio da invasão de terras públicas e fraudes cartoriais.
Segundo dados oficiais levantados no Diário Oficial do Estado da Bahia, somente entre 2011 e 2021, foram concedidas 761 Autorizações de Supressão de Vegetação para atividades agropastoris na região Oeste, numa área total de 774.127 ha. Em 2011, foram 30 autorizações que alcançaram 23.884 ha. Em 2021, apenas até setembro, foram 137 autorizações que já alcançam 130.702 ha, um recorde da década.
Pivôs ao longo do Rio Corrente - Oeste da Bahia
Foto: Thomas Bauer
A pesquisa também destaca que os esquemas de grilagem foram viabilizados pelo Estado da Bahia, especialmente por meio da omissão no dever de fiscalização dos Cartórios de Registro de Imóveis, da ausência deliberada de uma política de identificação, delimitação e destinação constitucional das terras públicas devolutas e da concessão indiscriminada de autorização de supressão vegetal e outorgas hídricas. Não houve empenho do estado na demarcação e titulação desses territórios, cenário que o estudo ilustra a partir do caso de quatro comunidades tradicionais de fechos de pasto: Porcos-Guará-Pombas, Capão do Modesto, Cupim e Vereda da Felicidade.
“Os fechos de Capão do Modesto, Vereda da Felicidade e Porcos-Guará-Pombas estão em processo de demarcação e titulação por meio de ação discriminatória administrativa pelo órgão de terras estadual (CDA), iniciado em 18 fevereiro de 2021. Esta ação é reivindicada há pelo menos uma década pelas comunidades e o longo tempo de espera imposto pelo órgão fundiário foi uma oportunidade para que os grupos de grileiros buscassem formas de consolidar a grilagem, inclusive com novos georreferenciamentos para realização dos cadastros do Incra e Cadastro Ambiental Rural (CAR) /Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR).” (trecho do estudo)
Os esquemas de grilagem eram possibilitados pelo que os pesquisadores chamaram de “inventar nos inventários”, que trata-se da conversão de supostas posses de terras em registro de propriedade particular nos cartórios. Essa apropriação ilegal facilitada pela grilagem aparece em dois momentos distintos, mas sempre tendo como pano de fundo o lucro. Primeiro com o objetivo de especulação fundiária, acesso a crédito subsidiado pelo Estado brasileiro e empréstimos bancários. Segundo com o mecanismo da grilagem verde, ou seja, a apropriação ilegal de terras com vegetação nativa com objetivo específico de averbá-las como reserva legal de outros imóveis ou mesmo recebimento de valores de créditos de carbono, possibilidades abertas pelo Código Florestal de 2012.
Embora para efeito do estudo tenha sido delimitados esses quatro fechos, na Bacia do Rio Corrente, são quarenta áreas de uso e manejo comunitário identificados, totalizando cerca de 369 mil hectares (ha) nos municípios de Correntina, Jaborandi, Coribe, Santa Maria da Vitória e Canápolis. Os territórios da Bacia do Rio Corrente foram sendo fragmentados com a chegada dos invasores, sobretudo nas décadas de 1960 e 70. Os quatro fechos estudados representam mais de 50.000 ha de ocupação tradicional e foram encontrados registros ilegais que somam 98.383 ha sobrepostos aos fechos com origem em quatro “fazendas fantasmas”.
Cerrado em pé - A história dos Fechos de Pasto se confunde com a própria história do Cerrado, uma vez que esses territórios tradicionais são resultado de um longo processo histórico, travado pelos antepassados das comunidades que atualmente fazem uso e protegem as áreas de cerrado na Bahia. Esta luta de resistência envolveu o enfrentamento com o agronegócio e especuladores e implicou na necessidade de se organizar para proteger as áreas de posse tradicional ainda não invadidas e desmatadas. “Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, em razão da luta das comunidades, é justamente nos fechos que o Cerrado segue em pé.”
Na fronteira da (i) legalidade: Desmatamento e grilagem no Matopiba” aponta recomendações de enfrentamento deste cenário, que serão enviadas para os órgãos do Sistema de Justiça, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça, Corregedorias dos Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas Estaduais.
A pesquisa está disponível na integra em www.matopibagrilagem.org
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