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Grilagem e invasões ameaçam comunidades da Barra e de Muquém de São Francisco

Thomas Bauer* (CPT-Bahia/ H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões)


Problemas começaram a partir da implantação do polo Agroindustrial e Bioenergético


O “Caderno de Conflitos no Campo – Brasil 2023”, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela que dos 2.203 conflitos, 249 foram registrados na Bahia. Assim, pela primeira vez, o estado se tornou líder de enfrentamentos, superando Pará e Rondônia. Os relatórios sobre os embates são elaborados desde 1985.


Entre os diversos conflitos, os mais graves hoje situam-se nas comunidades quilombolas Igarité e Curralinho, ambas no município da Barra. No caso do Curralinho, segunda maior comunidade rural, trata-se de uma invasão dos fundos do território tradicionalmente utilizado para o criatório de animais da comunidade pela vizinha Euroeste Bahia Agronegócios Ltda.


Já na comunidade Igarité os agricultores estão confrontados com ameaças contra a vida, espalhando terror, e tentativa de grilagem do seu território pela Igarite Agropecuaria S.A. (Igapesa). Muquém do São Francisco e Barra, municípios localizados na mesorregião do Vale de São Francisco, estão entre os mais conflituosos do estado. Localizados respectivamente a 710 km e 650 km capital (Salvador), ambos são banhados por dois importantes rios, o São Francisco e o Rio Grande, fontes de sustento para centenas de famílias de comunidades tradicionais diversas. E é ali que a iniciativa privada com o apoio do governo do estado iniciou a implantação do Polo Agroindustrial e Bioenergético.


Comunidade quilombola Curralinho na beira do São Francisco, município Barra. Foto:: Thomas Bauer – CPT/ H3000


De acordo com a propaganda feita pelo governo baiano, o polo é “a mais nova fronteira agrícola baiana, uma nova Luís Eduardo Magalhães [1]”. Com os argumentos de que o sol brilha em favor do agro, que o preço da terra ainda é acessível comparado a outros estados e há água em abundância, os governantes atraíam futuros investidores para Muquém e Barra.


As informações são contestadas pelos indígenas, quilombolas, assentados e acampados, bem como ribeirinhos dos quais alguns vivem nesses territórios há mais de 40 anos. Atualmente são  quatro aldeias indígenas, 12 comunidades quilombolas, 12 assentamentos, um acampamento e 26 comunidades ribeirinhas, entre elas Igarité e Curralinho, os principais prejudicados pelas violações de direitos e pelas ameaças feitas aos comunitários.


O POLO AGROINDUSTRIAL E BIOENERGÉTICO


Em 2020 o então vice-governador e secretário de desenvolvimento econômico, João Leão, pernambucano, nascido em uma rica família de proprietários de engenhos, com bom trânsito entre o agro e a política, fez questão de mostrar a região onde foi criado em uma das fazendas de seu pai.


Na época, durante a gestão do governador Rui Costa (PT), a previsão era que seriam instalados empreendimentos para produção de grãos, cacau, fruticultura, cana de açúcar, criação de bovinos e, no mínimo, 10 usinas sucroalcooleiras. Para que isso acontecesse, o Estado se comprometeu a investir dinheiro público para melhorar as rodovias, criar novas linhas de transmissão de energia e a construir a ponte que interliga os municípios de Barra e Xique-Xique, inaugurada em 2021.


Segundo apresentação do projeto da SDE o polo tem previsão de gerar 26 mil empregos diretos, com um aporte de investimentos privados na ordem de R$ 3,1 bilhões nos sete empreendimentos em implantação e nos cinco em análise, nos municípios de Barra, Muquém de São Francisco e Xique-Xique.



Fonte: Governo do Estado da Bahia


O governo estadual empenhado na busca por investidores parece desconsiderar as aldeias indígenas e comunidades tradicionais localizadas ao longo das margens dos rios, que oficialmente nunca foram informadas sobre este projeto. Vale lembrar que, neste caso, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), prevista em âmbito internacional deste 1989, do qual o Brasil é signatário, obriga o estado a realizar consultas prévias. Em tese a Consulta Prévia, Livre e Informada deve contribuir efetivamente na defesa dos direitos desses povos.


Não se sabe exatamente quais são os limites do polo. O foco da expansão do agronegócio se concentra atualmente em Muquém do São Francisco e Barra, gerando uma série de conflitos territoriais em terras indígenas demarcadas; em áreas de comunidades tradicionais, em processo de regularização; e assentamentos de reforma agrária. Mais: a previsão é que seria ampliado até os municípios de Xique-Xique, Santa Maria da Vitória e Pilão Arcado.


Questionada sobre a totalidade da área destinada ao projeto, a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico (SDE) disse que consultou dois diretores e nenhum deles soube informar detalhes da iniciativa. A assessora chegou a dizer que o projeto não estaria mais na SDE. Ela ficou de confirmar a informação, mas até agora não houve retorno.


Se de um lado as comunidades até hoje não sabem maiores detalhes; do outro é assustador o avanço dos empreendimentos com capital nacional e internacional que cada vez mais surgem, desmatando novas áreas onde antes predominava a caatinga e instalando novas bombas de sucção para retirar grandes quantidades de água dos rios para abastecer pivôs centrais cada vez maiores.



Área desmatada na Fazenda São José, pertencente à empresa Kamesq Agricola Ltda. Foto: Thomas Bauer – CPT/ H3000


LEMBRANÇAS TRÁGICAS


Vale a pena lembrar que nos anos 1970 e 1980 uma onda de expansão atingiu esta região e não deixou boas lembranças. Na época, conta Geraldo Bispo dos Santos, popular Geraldão, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Barra, um projeto encabeçado por João Leão e Carlos Simões, ex-prefeito de Barra, contou com o apoio da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e financiamento do Banco do Nordeste atraindo vários empresários pernambucanos.


No livro “Barra – um retrato do Brasil”, os autores Frei Arlindo Itacir Battistel e Joana Camandaroba fazem referência a este tempo:

“A desgraça ocorre quando os baianos vendem as suas fazendas para os pernambucanos ou fazendeiros de fora. Estes, como primeira providência, após tomar posse da fazenda, é expulsar, por bem ou por mal, os moradores da fazenda, que em muitos casos são famílias que moram a mais de cem ou duzentos anos naquele lugar às ordens da família do fazendeiro.”

Áreas imensas de caatinga nativa foram desmatadas para garantir a implantação dos primeiros pivôs centrais e a pecuária extensiva. Sistema de produção tradicional que costuma ocupar pastos em terras de latifúndios. Foi nesta época que começou a grilagem de terras, segundo Geraldão.


De acordo com relatos de antigos moradores, não demorou muito para que boa parte das fazendas que receberam investimentos fossem abandonadas diante das denúncias de superfaturamento e desvio de dinheiro, descoberto por um fiscal do banco, após o auge da primeira fase de expansão, quando a bovinocultura reinava. Os relatos também dão conta que uma das maiores fazendas da época, a Collier na beira do rio Grande, chegou a ter um rebanho de 20 mil bois, oficina mecânica e centenas de quilômetros de cercas de quatro fios de arame.


Mais recente em meados de 1995 outro projeto encabeçado por João Leão, o Projeto Distrito Brejos da Barra, em parceria com a empresa italiana Parmalat, desde 1972 com presença no Brasil, causou grande alvoroço na região. Atraídos com a promessa de emprego e melhoria na renda, as famílias dos brejeiros acreditaram no discurso promissor, que se tornou um fracasso. Segundo conversas com moradores, além de algumas casas populares, um grande galpão com equipamentos para beneficiamento de frutas, edificado na cidade de Barra, nunca foi utilizado. Não sobrou praticamente nada das mudas de caju e mangaba melhorada plantadas, bem como da pisicultura prometida.


DE VOLTA PARA O MOMENTO ATUAL


A atual expansão em diferentes casos têm gerado grande preocupação entre as comunidades que lidam com invasões nos seus territórios e ameaças de morte contra as lideranças. São conflitos graves envolvendo diversos crimes contra pessoas que nasceram e se criaram, ou ocupam há décadas, estas terras na beira de rio.


Os povos indígenas desta região ainda hoje sofrem com a invisibilização e o preconceito. Além dos povos oríginários oriundos da região, como os Tapuia, existem as aldeias dos Tuxá, Kiriri e Pankaru do norte do estado – afetadas nos anos 80 pelas construções das hidrelétricas no São Francisco e expansão de fazendas de gado -, bem como os Potiguara que vieram do estado da Paraíba. Com exceção dos Tapuia, os reassentados em Muquém do São Francisco contam com territórios reconhecidos, porém pequenos demais para as famílias que enfrentam grandes dificuldades.



Aldeia dos Tuxá na beira do São Francisco,  em Muquém. Foto: Thomas Bauer – CPT/H3000


Já as comunidades quilombolas, apenas Conceição em Barra não reconhecida pela Fundação Palmares, estão com seus processos de regularização dos territórios em andamento há anos. Devido à demora, encontram-se cada vez mais encurraladas entre a beira do rio São Francisco e as fazendas ao fundo sobrepondo-se aos seus territórios.


Aqui vale lembrar que mesmo que o processo de regularização do território não esteja concluído, as comunidades que utilizam as terras, que têm a posse do território, possuem direitos. E o estado tem a obrigação de garantir a regularização em favor delas. O atraso nos processos aumenta a pressão e violência contra os posseiros na tentativa de que estes desistam dos seus direitos.



Comunidade Ribeirão encurralado entre o rio e os pivôs centrais . Foto: Thomas Bauer – CPT/ H3000


Novas cercas impedem o acesso ao território usado tradicionalmente para criar seus animais, plantar suas roças e o acesso ao rio para pescar. Inclusive, quando conseguem acessar políticas públicas. O programa de habitação para comunidades quilombolas, por exemplo, não tem como implementar os recursos porque não tem terra para construir novas casas.


Inclusive as terras da união soba responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União; os lameiros, terrenos marginais de rio que compreendem uma faixa de 15 metros contados a partir da Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO) – faixa usada tradicionalmente; as lagoas marginais e as ilhas utilizadas para o plantio pelas comunidades hoje estão em disputa. Isso, apesar de a legislação ser clara em relação ao uso. A portaria n° 89/2010 [2], no artigo 1°, frisa: “disciplinar a utilização e o aproveitamento dos imovéis da União em favor das comunidades tradicionais.” E no artigo 4° consta: “é vedada a outorga da Autorização de Uso para atividades extensivas de agricultura, pecuária ou outras formas de exploração (…)”.


Existem vários relatos e boletins de ocorrências que acusam os fazendeiros e seus capangas de terem destruídos casas e impedidos o acesso dos agricultores e das agricultoras. Além disso há confrontos na base da ameaça, da pistolagem e tentativas de expulsões na força.

A propaganda e os incentivos do governo trouxeram também a volta da especulação em cima de fazendas possivelmente griladas anteriormente e abandonadas. Hoje, as vendas são protegidas por seguranças armadas.

Oitivas promovidas pela Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo – Foto: Thomas Bauer – CPT/ H3000


Toda esta realidade já foi denunciada amplamente aos órgãos públicos e recentemente reforçado durante a 4° Missão da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo, coordenada pela Cláudia Maria Dadico, durante as oitivas dos representantes das comunidades no dia 27 de agosto deste ano. Nesta ocasião, mesmo sofrendo na pele com os graves crimes nos seus territórios e ameaça à vida as lideranças comunitárias não perderam a oportunidade de manifestar a grande preocupação com a situação das águas dos rios já que o território preservado e a água são necessários para garantir a sua sobrevivência.


Portanto, há pouco o que comemorar na semana em que o São Francisco completa o 523º aniversário desde que o navio dos navegadores Américo Vespúcio (italiano) e André Gonçalves (português) chegaram à foz do rio e o batizaram com o nome do santo do dia 4 de outubro.

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Notas de pé de página

[1]  Pessoas de diferentes pontos do Brasil, principalmente do Sul do país, transformaram Luís Eduardo Magalhães na capital do agronegócio baiano. Com 24 anos de emancipação, é uma das cidades que mais crescem no país. Quando se desmembrou de Barreiras, o então povoado de Mimoso do Oeste era ponto de apoio na BR-242 (Bahia-Goiás). Hoje a cidade é a principal referência de Matopiba, divisa entre os estados do Maranhão, Tocantins, Bahia e Piauí. A expansão da soja e algodão e a chegada de indústrias e grandes revendedoras mudaram o perfil do local. A população saltou de 18 mil para 116 mil habitantes. A ampliação gerou problemas sociais e ambientais.


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Legenda da foto principal: Rio São Francisco. Foto: Thomas Bauer – CPT/ H3000

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Leia na próxima quinta-feira (3/10/2024): A disputa pela água dos rios

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Via Meus Sertões em parceria com a CPT-BA





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