Thomas Bauer, da H3000, e Paulo Oliveira, via Meus Sertões
Polo agroindustrial, seca relâmpago e crise climática estão sugando as águas dos rios São Francisco e Grande
“Quem lançar seu olhar sobre as águas do Rio São Francisco,
bem verá sob as ondas tranquila e um barco a vagar.
Leva o homem que tem sua pele bastante curtida
pelo sol e também pelo tempo daquele lugar”.
Homenagem do Cacique João Eudes, do povo Tuxá, ao rio São Francisco
As águas dos rios São Francisco e Grande já não correm mais como antes afirmam os ribeirinhos sem hesitação. São eles que nasceram e se criaram nas beiras que conhecem como ninguém as mudanças que aconteceram ao longo das últimas décadas.
“Hoje o rio tá praticamente morto. Cê olha, você cê só vê croa (banco de areia). Chega a cortar o coração quando você vê” (sic) – afirma a cacique Maria Kiriri, moradora do município Muquém do São Francisco, praticamente na metade do caminho entre Salvador (716 km de distância) e Brasília (778 km).
Banco de areia em frente à comunidade quilombola de Juá, Barra (BA). Foto: Thomas Bauer (CPT/ H3000)
O velho Chico, como é chamado carinhosamente pela população, é a veia vital que nasce no bioma do cerrado, em Minas Gerais, banha a caatinga na Bahia e desagua no Oceano Atlântico, definindo a divisa entre os estados de Sergipe e Alagoas. O rio Grande, por sua vez, é um dos principais afluentes do São Francisco. Ele nasce na Serra Geral de Goiás, no município baiano de São Desidério. Os dois rios se juntam na cidade de Barra.
Antes considerado um pai e uma mãe pelos ribeirinhos, de onde se tirava todo sustento, as comunidades tradicionais hoje acompanham com aflição os braços dos rios que secarem. Em parte do ano quando o nível da água baixa impede até a circulação de canoas, dificultando o ir e vir. Segundo o MapBiomas ao longo dos últimos 50 anos o rio São Francisco perdeu 30% do seu espelho d'água.
A lenta morte dos rios contrasta com a propaganda do governo do estado que fala da “abundante oferta hídrica” para atrair investidores em vista da concretização do Polo Agroindustrial e Bioenergético no Médio São Francisco.
Apresentado como “nova fronteira agrícola da Bahia”, os governantes contavam com investimentos privados de R$ 3 bilhões na implantação de sete empreendimentos, além de cinco que estavam em análise, nas cidades de Barra, Muquém de São Francisco e Xique-Xique. Dados como certos estavam duas usinas de álcool e etanol (Serpasa e Bevap), quatro produtores de grãos (Barracatu, Canaã, Ouroland e Desterro) e duas grandes empresas de pecuária (Euroeste e Canto da Salina). Outras quatro usinas e uma produtora de cacau e grãos eram esperadas.
Os seis primeiros empreendimentos, que totalizam 24.225 hectares (ou 242,25 quilômetros quadrados) receberam as seguintes vantagens: solicitação de outorga preventiva no Inema e na ANA, aceleração do processo de análise no órgão ambiental estadual, acesso a financiamentos com baixos juros, incentivos fiscais, isenção de impostos.
Fazenda Euroeste com dois pivôs centrais para criação de boi. Foto: Thomas Bauer (CPT/ H3000)
Irrigação por pivôs centrais
Segundo a Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA), os principais usos de água na Bacia do rio São Francisco são irrigação (77%) e abastecimento humano (12%). Vale ressaltar que os irrigantes gastam seis vezes mais água do que a população de 512 municípios de seis estados abastecidos pelo São Francisco.
Ao longo do trecho da rodovia BA 160 que liga os municípios de Muquém do São Francisco e Barra chama atenção a supressão da caatinga em favor de áreas irrigadas por pivôs centrais. Segundo levantamento feito por satélite por um dos autores da reportagem, existem pelo menos 57 pivôs centrais na beira do São Francisco e 17 no rio Grande, entre a fazenda Boqueirão e a sede do município de Barra.
Na margem do São Francisco, a Serpasa Agroindustrial (Grupo Paranhos) conta com a primeira usina sucroalcooleira e 22 pivôs instalados. Os pivôs, em média, têm capacidade de irrigar 110 hectares de cana de açúcar. O case é considerado um sucesso entre os representantes do governo estadual, que esperam a instalação de mais 10 novas usinas no futuro.
“O pivô gasta mais ou menos um litro de por segundo por hectare irrigado. Ou seja, aquele pivô que tem captação direta do rio, se ele irriga uma área de 110 hectares, gasta 110 litros por segundo. Quando este pivô está abastecido por uma estrutura que a gente chama de piscinão, reservatório fora do rio, muitas vezes esta proporção cai pela metade”– explica especialista que pede para não ser identificado.
Outros fatores tornam a situação mais complexa de acordo com levantamentos feitos nos últimos anos. Segundo o relatório anual produzido pelo MapBiomas [1] alerta:
A agricultura é considerada a principal usuária dos recursos hídricos, como também uma das atividades que mais contamina os recursos naturais, em especial o solo e a água. A salinidade do solo e da água e a contaminação das fontes hídricas por nitrato estão incluídas entre os principais indicadores de poluição ambiental.
No Brasil, o crescimento desordenado das cidades, o uso intensivo da água pela irrigação e a construção de usinas hidrelétricas já criam situações de conflitos, como ocorre no rio Paracatu, em Minas Gerais, que é o afluente com maior contribuição de água para o rio São Francisco. Esse mesmo fato vem ocorrendo em outras regiões, como na bacia do Salitre, na Bahia, também afluente do São Francisco. No âmbito global, problemas relativos à competição pela água podem se tornar cada vez mais grave à medida que o aquecimento global, o crescimento populacional e a poluição reduzem sua disponibilidade.
O uso excessivo de agrotóxicos nos sistemas agrícolas vem causando sérios problemas de contaminação de águas por resíduos e metais pesados. O manejo inadequado destes insumos, associado ao mau uso da água na irrigação, faz com que alguns elementos sejam transportados por processos de escoamento superficial e percolação, e sejam carreados para as fontes hídricas superficiais e subterrâneas, causando impactos negativos ao ambiente, em especial ao homem. Além disso, devem ser considerados os problemas relacionados com a erosão dos solos e o assoreamento dos corpos d’água.
No Brasil, cerca de 25% da área irrigada está salinizada ou em processo de salinização, sendo que, a quase totalidade (90%) encontra-se em perímetros irrigados. No Nordeste brasileiro cerca de nove milhões de hectares possuem problemas de salinidade e/ou alcalinidade.
O semiárido brasileiro, com características climáticas de alta demanda evaporativa e baixa precipitação, solos rasos e com baixa drenagem natural, a consequência ao longo do tempo será a salinização, mesmo sendo irrigado com água de baixa salinidade.
Já os pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas apresentaram em agosto passado estudo demonstrando que a vazão anual do Rio São Francisco diminuiu mais de 60% nas últimas três décadas. Levantamento feito pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) da instituição revela que houve perda de 15% da cobertura vegetal da bacia hidrográfica entre 2012 e 2020, quando ocorreu uma das secas mais longas da história da região centro-norte do rio.
Para isto colaboraram intensamente as secas-relâmpago, extremo climático de início rápido e intenso combinado com altas temperaturas. O fenômeno sempre existiu, mas se intensificou nas últimas décadas, de acordo com o pesquisador e meteorologista Humberto Barbosa.
“Temperaturas mais altas aumentam o uso diário da água pelas plantas, além da evaporação dos corpos d’água e dos solos. As ondas de calor extremo foram cruciais para reduzir o volume do rio. À medida que fica mais quente, a atmosfera retira mais água das fontes da superfície e a principal consequência é que menos água flui para o rio São Francisco. Essas descobertas da pesquisa podem ser aplicadas a todos os rios brasileiros” – ressalta Humberto.
A bacia do São Francisco é formada por 504 municípios e 168 afluentes temporários e permanentes. Durante a seca de 2011 a 2017, a nascente do rio secou, em Minas Gerais. Nesse período, a barragem de Sobradinho (BA), maior lago artificial da América Latina, atingiu o volume morto.
Desmatamento da caatinga
Ao longo dos anos 2019 e 2023, segundo o Relatório anual do Desmatamento no Brasil (RAD2023) do MapBiomas, foram derrubados 13.972,40 hectares do bioma caatinga no município de Barra. A variação no período aumentou 17.493,73% (ver gráfico abaixo).
De acordo com o alerta código 912386, em 2023, a maior área desmatada foi detectada na Fazenda Boqueirão, em Barra. Levantamento do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) no Sistema Estadual de Informações Ambientais e Recursos Hídricos (SEIA), não foi identificada Autorização de Supressão de Vegetação Nativa (ASV) concedida pelo órgão em nome do titular cadastrado.
Adicionalmente, o Inema informou que, em pesquisa ao Diário Oficial da Prefeitura Municipal da Barra, foi identificada a existência de três ASVs emitidas pelo poder público municipal, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Meio Ambiente e Turismo, e todas para poligonais indicadas no imóvel citado. Conclusão apontada pelo relatório do Mapbiomas: “é possível deduzir que as áreas relacionadas ao alerta foram autorizadas pela prefeitura”.
Fazenda Boqueirão , do grupo Adriano Cobuccio, na beira do rio Grande. Foto: Thomas Bauer (CPT-H3000)
A Fazenda Boqueirão passou a fazer parte da Agropecuária Sul Brasil – Unidade Bahia, em 16 de junho de 2023. A Sul Brasil faz parte do grupo Adriano Cobuccio, conglomerado que reúne 53 empresas [2] de diversos setores, incluindo mineração, tecnologia, fundos de investimentos, usinas hidrelétricas (seis), rede de postos de gasolina, commodities, pelo menos 17 fazendas, empreendimentos imobiliários, aluguel de veículos e equipamentos e até plano funerário. A sede do grupo está localizada em Monte Belo, Minas Gerais.
Sede da Serpasa na beira do rio São Francisco com cana de açúcar irrigada. Foto: Thomas Bauer (CPT/ H3000)
A Serpasa é o nome utilizado pela Companhia Agropastoril Vale da Piragiba, cuja matriz está localizada na Avenida Conselheiro Aguiar, 1748, Praia da Boa Viagem, em Pernambuco. A filial de Muquém se localizada numa estrada rural à beira do rio São Francisco.
No registro de CNPJ da Receita Federal, a matriz e a filial estão inaptas por omissão de declarações desde 20 de agosto de 2024. Consta ainda a autuação de infrações, emitidas pelo Ibama, no valor total de R$ 640 mil, em função de “produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou em seus regulamentos” (artigo 64 do decreto 6514/2008).
Além disso, dois dos empresários também são diretores da Japasa – Japaranduba Agropastoril, dedicada à pecuária. Essa empresa possui dívida ativa com a União no valor de R$ 7 milhões 883 mil. O passivo é formado por débitos previdenciários, trabalhistas e não previdenciários. Os dois são, respectivamente, diretor e presidente da empresa Baixadão Agropecuária, que deve R$ 3 milhões e 841 mil.
Um deles dirige ainda a Paranhos Ltda, cujo nome fantasia é Paranhos S.A Serviços de Motomecanização. A dívida ativa da firma com a União, segundo consulta em 28/09/2024, é de R$ 30 milhões e 291 mil.
Transposições particulares
Para garantir a água necessária pelo menos dois empreendimentos, a Serpasa Agroindustrial e a Kamesq Agricola Ltda, mais conhecida na região como Fazenda São José, contam com enormes canais abertos. Sem nenhum tipo de revestimento, eles desviam água do rio São Francisco para abastecer seus pivôs centrais.
Os acessos à água do rio São Francisco, corpo d´água sob domínio da União, para os empreendimentos ou proprietários são concedidos pela Agência Nacional de Águas e Saneamento básico (ANA) diante de uma autorização ou outorga.
Chama atenção a inadimplência dos usuários, que segundo dados da ANA, não pagam a taxa fixada pela retirada d´água há anos. No caso específico dos irmãos Paranhos, Luís Sérgio Paranhos Ferreira e Luiz Eduardo da Fonte Paranhos Ferreira ocupam o 10º e o 18º no ranking dos 100 maiores devedores de outorga da água na Bacia do São Francisco. Os valores corrigidos são, respectivamente, de R$ 867 mil e 118 e R$ 472 mil e 029. Já a Kamesqu Agricola Ltda, ocupa a 39º colocação, devendo R$ 261 mil e 865 à união. Os valores estão sujeitos a alterações.
Outro fato preocupante segundo os moradores locais é um canal (funciona como uma espécie de dreno) construído na Fazenda Barracatu, vizinha da comunidade Curralinho, perto da cidade da Barra, no qual a água excedente dos pivôs é devolvida para o rio. Os mesmo questionam a qualidade desta água sabendo que a agricultura irrigada utiliza agrotóxicos em larga escala.
Enquanto isso, as aldeias indígenas e comunidades tradicionais na beira dos rios contam com uma estrutura precária de abastecimento de água e não possuem esgotamento sanitário. A comunidade é obrigada a utilizar água sem tratamento para todas as necessidades dentro de casa. Água potável apenas para quem tem dinheiro e pode comprar.
O drama aumenta consideravelmente no período chuvoso. Mesmo utilizando um coador de pano, filtro de barro e algumas gotas de hipoclorito, o líquido continua turvo. São frequentes os surtos de diarreia, mal-estar e coceiras no corpo depois de tomar banho. Poucas comunidades têm poços artesianos e só uma, Brejo Seco, recebe água tratada em carro pipa da Embasa.
Encontro dos rios São Francisco e Grande, na cidade de Barra (BA). Foto: Thomas Bauer (CPT-H3000)
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Notas de pé de página
[1] O MapBiomas é uma iniciativa do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG/OC) e é produzido por uma rede colaborativa de co-criadores formado por ONGs, universidades e empresas de tecnologia organizados por biomas e temas transversais.
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Legenda da foto principal: Bombas da água da Serpasa Agroindustrial,, em Muquém do São Francisco. Foto: Thomas Bauer (CPT-H3000)
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(*) Reportagem feita em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA)
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