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Povo Guarani Kaiowá replanta a própria vida em terra devastada pelo agro no Mato Grosso do Sul

Na retomada Yvy Ajhere, lideranças Guarani Kaiowá recebem jornalistas para uma conversa sobre a luta por terra e território. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR


Iniciativa foi realizada pela Campanha Cerrado com a participação da AATR e outras entidades componentes da articulação ; Encontro reuniu cerca de 20 jornalistas que conheceram retomadas de territórios indígenas


Sobre a terra devastada por monocultivos tóxicos de soja e milho transgênico, indígenas Guarani Kaiowá – mulheres, crianças, homens, jovens e idosos – montam barracas de lona e iniciam mais uma retomada de parte da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, Mato Grosso do Sul. Desde 2011, a TI foi identificada e delimitada pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em 12 mil hectares, mas a demarcação foi barrada por ações judiciais, em um estado que protagoniza escândalos na venda de sentenças judiciais.


Falta tudo na retomada: água potável, alimento, remédios, cuidado médico para quem precisa, falta segurança – jagunços a serviço de fazendeiros rondam dia e noite o local. Sobra a violência do Estado, que se faz presente pela ausência, no total desamparo ao povo que, desde 1500, tenta recuperar seus territórios invadidos e saqueados por Europeus e, agora, por fazendeiros do agronegócio que exportam grãos à China e países da Europa.


É por causa dessa ausência estatal, ancorada no racismo histórico e colonial que estrutura a sociedade brasileira, que os Guarani Kaiowá, segundo maior povo indígena do Brasil, com mais de 64 mil habitantes no Mato Grosso do Sul, entendem que nenhuma demarcação de suas terras será feita, mesmo sendo lei, e que a única forma de estar em seu tekoha (lugar em que se é, na língua guarani) é por meio das retomadas. A demarcação tem sido feita pelos próprios indígenas, com seus pés, rezas e cânticos.


Ao todo, o povo Guarani Kaiowá demanda como suas terras ancestrais 700 mil hectares em todo o Mato Grosso do Sul, cerca de 2% da área do estado, que tem 35 milhões de hectares. No entanto, há décadas eles têm sido obrigados a viver em reservas diminutas, que confinam milhares de pessoas em espaços insuficientes para a manutenção de seus modos de vida.

Barracas de lona da retomada são instaladas sobre os campos de soja e milho de fazendas do agronegócio exportador. Falta água e comida nas retomadas, e o solo está contaminado com agrotóxicos. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações


As mais recentes retomadas aconteceram em julho desse ano, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina. Ao todo existem, hoje, sete retomadas nessa TI. Os ataques de fazendeiros, jagunços e policiais militares aos indígenas em seus territórios reocupados são virulentos. Atropelamentos, tiros com armas de fogo e bala de borracha, espancamentos, perseguição, tortura, tentativas de assassinato. São inúmeros os relatos de violência contra as pessoas acampadas noticiados pela imprensa.


A Força Nacional foi enviada em julho pelo governo federal para garantir alguma segurança aos indígenas diante do aumento da violência de ruralistas contra eles. Ainda assim, houve denúncias de que policiais da Força Nacional estavam interagindo amistosamente com jagunços que cercavam as retomadas para atacar os Guarani Kaiowá. Em agosto, as equipes da Força se retiraram de uma das regiões sem prévio aviso – mesmo com a tensão instalada –, deixando o caminho livre para novos ataques. Jagunços fortemente armados avançaram contra os Guarani Kaiowá, atirando com armas de fogo e balas de borracha; 10 indígenas foram feridos.


Um deles, um jovem de 20 anos, levou um tiro na cabeça, e até a data da visita, em outubro, seguia com a bala alojada no crânio. O atendimento inicial recebido por ele no hospital público de Dourados, capital do Mato Grosso do Sul, a 40 km do local do ataque, foi marcado por mais violência. "O jovem contou que ouviu de um policial militar, que estava no hospital, que o tiro deveria ter sido para matar. 'Ele disse que o tiro foi errado. Que deveria ter atingido no meio do peito. ‘Que assim matava logo o vagabundo'", afirma reportagem sobre o caso.


Reunião do povo Guarani Kawioá com jornalistas na retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, na zona rural de Douradina, Mato Grosso do Sul. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações


No Mato Grosso do Sul, estado dominado por monocultivos de grãos do agronegócio exportador, a sanha contra os povos originários é histórica. Há pelo menos 20 anos, a violência que se vê hoje contra as retomadas da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica já se enraizava no estado, degenerando em expulsões, torturas, sequestros, assassinatos e massacres. Em 2016, o Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá e entidades apoiadoras da causa indígena, protocolou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) uma denúncia contra o Estado brasileiro "por violações aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, no Protocolo de San Salvador e na Convenção de Belém do Pará".


Atualmente, a instabilidade jurídica das demarcações e a violência de ruralistas e latifundiários contra os povos indígenas em todo o Brasil, e em especial no Mato Grosso do Sul, se intensificou com a lei do marco temporal, aprovada pelo Congresso em outubro de 2023, determinando que os indígenas somente têm direito à demarcação das terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.


Um mês antes da aprovação da lei pelo Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese do marco temporal. Agora, porém, além da lei – inconstitucional – já aprovada, está em discussão o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) número 48, que pretende incluir na carta magna a tese do marco temporal.


Lideranças indígenas falaram a jornalistas sobre sua espiritualidade e sobre a força das nhandesi e nhanderu para a permanência no território. Crédito: Júlia Barbosa - CPT Nacional


Visita de jornalistas e comunicadoras populares


Diante de todo este cenário de violência colonial, especialmente em territórios ocupados pelos Guarani Kaiowá no Cerrado sul-matogrossense, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e a Articulação Agro é Fogo, em parceria com entidades e movimentos da sociedade civil que trabalham na defesa do Cerrado e dos povos e comunidades tradicionais que o coabitam, realizaram em Dourados, entre os dias 13 e 16 de outubro, o “I Encontro de Comunicadoras/es Populares e Jornalistas: o Cerrado e seus Povos”.


O encontro reuniu 20 jornalistas do sul, sudeste e centro-oeste do país, além de comunicadoras e comunicadores populares quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais de diferentes territórios do Cerrado, com o objetivo de ampliar a difusão das informações sobre este bioma, seus povos e comunidades, e os desafios na defesa dessa região ecológica.


De modo especial, o encontro propiciou às pessoas participantes um contato mais próximo com a luta dos Guarani Kaiowá por meio de visitas às retomadas Laranjeira Nhanderu II, na Terra Indígena Brilhantepeguá, no município de Rio Brilhante, e à retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, tendo no horizonte possibilidades de denúncia sobre as violações sofridas, considerando que as dinâmicas que se desenham nesta localidade têm se configurado como modelo a ser projetado para todo o Cerrado.


Encontro entre indígenas Guarani Kaiowá e jornalistas aconteceu em outubro, e contou com a presença de profissionais do sul, sudeste e centro-oeste do país. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR


Jornalistas e comunicadoras foram recebidas com cantos e danças rituais e puderam ouvir, por horas, relatos em primeira pessoa das violências sofridas, perpetradas ao longo de décadas pelo estado brasileiro e latifundiários, mas também estratégias de resistência baseadas na força espiritual das nhandesy e nhanderu – rezadoras e rezadores –, no respeito à ancestralidade, na coletividade e na soberania alimentar ancorada nos modos de vida tradicionais. Na retomada Laranjeira Nhanderu II, a produção agroecológica dos Guarani Kaiowá é escoada para instituições de ensino locais, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é federal.


As visitantes foram estimuladas pelas lideranças a fazer denúncias, mas também anúncios sobre as conquistas do povo, como o destaque de jovens Guarani Kaiowá que se dedicam aos esportes e participam de competições oficiais, o ingresso em universidades, a formação de mestras e doutoras indígenas na academia, a manutenção da cultura, a força da sabedoria de anciãs e anciãos, o protagonismo das mulheres Guarani Kaiowá nas lutas e a força ancestral do povo e sua disposição em retomar e permanecer em seu tekoha.


Texto: Campanha Cerrado


 

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