A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP vem por meio da presente carta repudiar as graves violações de direitos humanos e criminalização de defensoras de direitos humanos que vêm ocorrendo no estado de Rondônia.
A região Amazônica é uma das principais áreas de conflitos fundiários no País, e ocorre atualmente uma alarmante escalada de violência e criminalização de defensoras e defensores de direitos humanos, em que povos indígenas, comunidades tradicionais, trabalhadoras e trabalhadores rurais e sem terra sofrem despejos, agressões, ameaças, roubos, perseguições e assassinatos. Além do caráter histórico de violência nas execuções de reintegrações de posse de assentamentos rurais em Rondônia, como o massacre de Corumbiara ocorrido em agosto de 1995, a prática de perseguições, assassinatos e criminalização de lideranças populares vem escalonando sobre o atual governo de Marcos Rocha e seu Secretário de Segurança Pública, José Hélio Cysneiros Pachá, estimulada pelo governo Bolsonaro.
No último ano ocorreram diversas ofensivas contra a população campesina da região, dentre elas, nos dias 19 e 20 de outubro de 2021, o início da remoção ilegal dos camponeses nos acampamentos Tiago Capim dos Santos (palco de uma ação violenta da polícia em outubro de 2020) e Ademar Ferreira, em uma verdadeira operação de guerra (mais de 400 policiais, helicópteros, mesmo com decisão no Supremo Tribunal Federal da Ministra Carmen Lúcia suspendendo a ordem de reintegração de posse (RCL 50084 MC/RO). Ademais, há decisão cautelar proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 828, suspendendo o cumprimento de mandados de reintegração de posse até 03/12/2021.
Durante as operações policiais, camponeses foram cercados e houve casos de extrema gravidade, denunciados pela ABRAPO após relatos colhidos in loco, como a execução dos camponeses Amarildo, Amaral e Kevin, em 13 de agosto de 2021 (Acampamento Ademar Ferreira) com tiros de fuzil pelas costas, e o assassinato de outros dois camponeses Gedeon e Rafael, em 29 de outubro de 2021, por tiros que teriam partido do helicóptero da PM que sobrevoava o local (Acampamento Dois Amigos).
Nesse contexto de extrema violência e violações por parte do Estado contra o movimento popular, a advogada Lenir Correia, integrante da ABRAPO, desenvolve o trabalho de assessoria jurídica, defendendo os trabalhadores e trabalhadoras rurais de mais de 30 acampamentos, de forma hercúlea. Por essa razão foi vítima de constantes ameaças de morte no estado de Rondônia, tendo que se afastar de seu trabalho e família e sair do estado durante um período, consciente de que essas "promessas" em terras amazônicas são cumpridas.
Há alguns anos, por seu compromisso com a luta popular, retornou ao estado de Rondônia, exercendo a advocacia na defesa de acampados e militantes populares. A partir de então continua sofrendo tais ameaças e, mais do que isso, intimidação por agentes estatais no exercício da profissão. No dia 10 de junho deste ano, em cumprimento de reintegração de posse da Fazenda Jatobá, a Dra Lenir chegou a ser levada junto com seus clientes (inclusive crianças) para uma Delegacia de Polícia (mesmo tendo sido cumprida a reintegração de forma voluntária, mansa e pacífica), sendo obrigada a entregar seus documentos aos agentes policiais, que também tiraram fotos da advogada, realizando típico "fichamento" da mesma.
Na data de ontem, dia 23 de novembro de 2021, fomos surpreendidos com a notícia da busca e apreensão ocorrida na casa da Dra Lenir Correia, dentro da Operação Canaã, que claramente visa criminalizar o Movimento Social. A busca e apreensão realizada com aparências de "legalidade e formalismo" (determinada por decisão judicial e com acompanhamento da OAB) avança mais um capítulo no processo de criminalização dos movimentos populares e de seus defensores e advogados.
A decisão determina a apreensão "além dos objetos contidos na representação e alvo da investigação, elementos de convicção (sic) e outros objetos obtidos por meios criminosos ou que sejam inerentes para prova dos autos", em um inquérito "visando a apuração da prática de crime de organização criminosa (...) destinada à invasão de terra nas cidades de São Francisco do Guaporé e Seringueiras/RO (...) e lavagem de dinheiro". Afirma ainda que "Com as investigações, foi possível constatar que as pessoas de (...) LENIR CORREIA COELHO (...) possivelmente atuam na liderança".
Lamentamos profundamente a insistência na criminalização das ocupações de terras por parte do Poder Judiciário (com apoio especial do atual Poder Executivo Federal, que nas palavras do presidente Jair Bolsonaro, categoriza os trabalhadores sem terra de Rondônia como terroristas), quando desde 1997 os Tribunais Superiores têm declarado a ocupação de terra como legítima forma de pressionar o Estado a realizar a Reforma Agrária, não se enquadrando no crime de esbulho possessório!
Por essa razão, citamos nessa nota o referente acórdão prolatado pelo então relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:
"HC. Reforma Agrária. Movimento Sem Terra. Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático." (HC nº 5.574/SP, 6ª Turma, STJ, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 08.04.97, m.v.)".
Apesar de determinar que as pessoas que sofreriam tal busca e apreensão deveriam ser comunicadas antes da força policial entrar no domicílio, a Dra Lenir foi surpreendida no dia 23, às 6 horas da manhã em sua casa, com uma verdadeira invasão da polícia, que pulou o muro para adentrar o imóvel (sem comunicação prévia), levando seus computadores, celulares, cadernos com informações de processos e pessoais, mapas, rascunhos, uma pasta com notas promissórias de camponeses referentes a contratos de honorários e R$ 24.500,00. A abstração da decisão judicial poderia incluir tudo isso nos "elementos de convicção", determinados pela própria polícia que adentrou ilegalmente o imóvel.
O exercício da advocacia é indispensável à administração da Justiça, sendo as advogadas e advogados defensores do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce, conforme art. 2º do Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil e art. 133 da Constituição Federal.
Neste sentido, os advogados e advogadas populares veem o Direito como um mecanismo estratégico de mitigar as desigualdades e opressões sociais, de modo que a liberdade profissional e a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática são prerrogativas inerentes e essenciais à defesa dos direitos alheios (art. 7º, incisos I e II da Lei nº 8.906/1994, não podendo ser suprimidas ainda que respaldadas por decisão judicial.
Não se pode naturalizar e nem admitir, que as instituições públicas continuem com sua prática reiterada de repressão aos movimentos sociais e seus defensores. A conduta abusiva do Estado, especialmente por parte de alguns profissionais da segurança pública, muitas vezes criminosas, atuando contra a população indígena e campesina da região amazônica, se soma ao quadro de negação de direitos que mergulha o país.
A tentativa de intimidação e criminalização da advogada Lenir Correia não apenas atinge toda a classe profissional, como se insere em um contexto mais amplo de perseguição aberta aos direitos e às conquistas dos povos, aos movimentos sociais e a manifestações políticas de rechaço aos acentuados retrocessos operados nos últimos tempos.
Pelas razões acima expostas, repudiamos a ação criminalizante contra o movimento social e, EM ESPECIAL, A TENTATIVA DE CRIMINALIZAÇÃO DA ADVOCACIA POPULAR NA PESSOA DA DRA LENIR CORREIA.