O evento, que é realizado anualmente em memória do patrono da AATR, Eugênio Lyra, discutiu crise climática, injustiça fundiária e ambiental
O município de Lençóis, na Chapada Diamantina (BA) foi o cenário ideal para a realização XXXII Semana da Terra – Eugênio Lyra, mas não pelos motivos que consagraram a região como um dos principais destinos turísticos do Brasil e do mundo. O município foi o escolhido para receber o encontro devido ao avanço predatório de empreendimentos de energia renovável e mineração que tem ocorrido nos últimos anos. Diante da necessidade de enfrentamento a esse cenário, a Semana da Terra este ano veio com o tema “Crise Climática e (In) justiça Fundiárias e Ambientais”. Foram três dias de intenso debate com a participação de representantes de comunidades, movimentos, parceiros e especialistas.
Nas boas-vindas, o advogado popular e presidente da AATR, João Régis, fez um resgate histórico da realização da Semana da Terra e salientou o objetivo do encontro. “Estamos começando a XXXII Semana da Terra. É um evento que a AATR realiza em memória do companheiro Eugênio Lyra, que foi assassinado quando se deslocava para salvador para depor na CPI da grilagem. Hoje os atores da violência no campo mudaram e a forma de atuação também, precisamos tirar subsídios para lidar com essa realidade”, comentou.
O primeiro dia do encontro (22/09) foi dedicado a discutir a conjuntura da crise climática, bem como os discursos fomentados pelo norte global e endossados pela mídia hegemônica acerca dos enfrentamentos à questão socioambiental. A conferência de abertura foi proferida pelo professor Henri Acselrad, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR). Em seguida, a mesa de abertura: “Crise climática, transição energética e avanço de grandes empreendimentos” contou com a presença de Cristiane Faustino, do Instituto Terramar e Cláudio Dourado do Observatório da Chapada Diamantina (OCA/CPT-BA), com mediação de Lays Franco, coordenadora do setor administrativo/financeiro da AATR.
Henri Acselrad trouxe um panorama dos últimos governos e a validação da grilagem pelo estado, principalmente em terras públicas. Salientou que o modelo desenvolvimentista do estado não oferece segurança às comunidades. “Atualmente, vemos que várias frentes voltadas à legalização da grilagem de terras públicas continuam em ação: o projeto do marco temporal, por exemplo, exprime a pretensão de ruralistas promoverem uma espécie de revogação prática da adesão do Brasil à Convenção 169 da OIT”, sinalizou.
Trazendo a experiência do estado do Ceará, Cristiane Faustino, do Instituto Terramar, destacou que a mudança climática é uma realidade que coloca em risco a própria existência do planeta e que é necessário desencastelar esse debate. “Na abordagem macropolítica e econômica internacional há diagnósticos com baixa participação da sociedade. Há um debate hegemônico neoliberal. A mudança de matriz energética será feita para trazer mais conforto ao Norte Global. A partir de políticas impositivas e desiguais sobre as comunidades.”, alertou.
Como forma de situar a importância desse debate ocorrer em Lençóis-BA, Cláudio Dourado, do Observatório da Chapada Diamantina (OCA/CPT-BA) salientou que a Chapada está espremida no meio de três corredores de vento que se inserem no projeto do estado da energia renovável, mas que ignora a realidade das comunidades. “É importante vocês entenderem em que chão vocês estão pisando. Essa é uma região de conflito que não tem espaço para o camponês, nem para o campesinato. Os ambientalistas têm um discurso que não considera o camponês, nunca foi considerada a questão socioambiental”, explicou.
As atividades do sábado (23/09) pela manhã foram abertas com uma Roda Interativa, com o tema: “Empreendimentos minerários, disputas fundiárias e impactos ambientais: estratégias jurídicas de enfrentamento”. O momento, além de intensa participação da plenária, contou com a presença de Juliana Neves (AATR-BA/UFRB), José Beniezio (CPT/MAM), Catarina Silva (Comunidade Quilombola de Bocaina), com mediação de Natiele Santos, coordenadora de programas das AATR.
José Beniezio destacou que ainda há um passivo grande nos movimentos em relação ao golpe e à pandemia. “Sem unidade vamos cada vez mais ser derrotados, o fascismo segue vivo nas ruas deseducando o povo”. Juliana Neves da AATR-BA/UFRB, destacou a racialização do espaço geográfico que sinteticamente tem a ver com a presença de empresas mais poluentes nos países de terceiro mundo, o que dá a ver a concepção neoliberal de que essas vidas não valem ou valem menos.
Foi justamente esse sentimento que D. Catarina Silva, da comunidade quilombola de Bocaína, expressou ao relatar situações que ocorreram nos últimos anos a partir da atividade de extração de minério na região, com grande poluição, detonações, tráfego de veículos pesados, britadores e interdição de estradas. “Na pandemia se intensificaram as atividades a gente não via mais nem o sol, foi quando a comunidade se uniu e criou estratégias de resistir”, comentou.
Ainda no sábado pela tarde foi realizada a mesa “Empreendimentos de geração de energia e os problemas sociais e ambientais na geração de energia renovável na Bahia”, com a participação de Carivaldo dos Santos (CPT-BA), Cleide Andrade (comunidade de água verde – Brotas de Macaúbas-BA) e Fernando Maia (UFPB), com mediação de Cloves Araújo (AATR-BA e Geografar).
Fernando Maia chama a atenção para a lógica dos contratos e para as armadilhas embutidas nesse modelo. “ A melhor forma do capital circular é facilitar os contratos, a “liberdade”, o centro jurídico da nossa sociedade e da vigência do capitalismo é o contrato, não é a constituição. Nós precisamos mudar o marco jurídico e para isso e necessário fortalecer os territórios e fortalecer a ideia de nação”, explicou.
Na mesma linha de Fernando sobre os contratos, Cleide Andrade, da comunidade de Brotas de Macaúbas, primeira cidade da Bahia a implementar parque eólico, enfatiza que no início do empreendimento vendeu-se a ideia de que era maravilhoso, que geraria renda e desenvolvimento. “Não foi nada disso, de 2009 até a implementação do campo os problemas foram muitos, os contratos são muito abusivos, o interesse é só financeiro”, apontou.
“Precisamos questionar essa ideia de energia verde. Esses parques atingem diretamente a vida das pessoas, são instalados em áreas planas usadas para a agricultura. O solo precisa ser zerado para que as plantas não invadam as placas, ou seja, teve parque solar, nada mais vai ser plantado ali”. Alertou Carivaldo dos Santos, da CPT-BA, destacando que é preciso colocar a atenção tanto nas eólicas quanto nos parques solares, tendo em vista que esses últimos têm consequências que também são desastrosas do ponto de vista socioambiental. No domingo (24/09), foi realizada uma plenária final e lançamento de livros dos associados e professores Sara Cortes e Cloves Araújo.
Foram três dias de trocas, diálogos, encontros e reencontros, tendo uma expressiva presença de integrantes de comunidades, entidades e movimentos sociais. A Semana da Terra se despediu de Lençóis-BA, com o sentimento renovado e desejosa de que a justiça chegue às comunidades da região que é considerada patrimônio nacional e às demais que lutam e protegem incansavelmente seus territórios, biomas, modos de vida tradicional e cultural e, por conseguinte, a própria sustentabilidade do planeta.
Registros: Morgana Damásio e Aryelle Almeida