Historicamente vulnerabilizadas, marginalizadas, violentadas e desassistidas do acesso integral às políticas públicas, as comunidades tradicionais têm feito o que sempre fizeram: resistido.
Com o avanço da pandemia e a orientação de isolamento social, as comunidades estão modificando suas rotinas e além de efetivarem as próprias medidas de prevenção ao contágio, se deparam com a dificuldade de comercialização da produção, o que tem impactado diretamente na subsistência das famílias.
Uma das estratégias adotadas pelos povos Tupinambás, Pataxós e Kaimbés, na Bahia, é a construção de barreiras sanitárias, para evitar a circulação de pessoas estranhas nos territórios e a contaminação comunitária. As estradas que dão acesso às aldeias foram fechadas com troncos, cercas, correntes e contam com a vigilância dos moradores, que relatam a pressão dos turistas, polícia e políticos locais para a reabertura das estradas.
As barreiras também foram adotadas pela Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto de Bom Jardim, no Município de Canudos (BA). A decisão foi tomada após a comunidade oficiar, sem retorno algum, a Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores, SEPROMI e SESAB sobre a circulação de funcionários da empresa Gepê Engenharia (contratada pela Voltalia Energia do Brasil Ltda) na zona rural. Os trabalhadores estavam desempenhando a elaboração de estudos para fins de licenciamento ambiental, que não se enquadram no rol de atividades essenciais definido no Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020, nem está descrita como serviço essencial no Decreto Municipal nº 770, de 17 de abril de 2020.
Sem retorno dos órgãos públicos e temendo a falta de estrutura de saúde no município, que não possui UTI e conta com apenas 01 respirador, a comunidade passou a realizar controle de acesso ao território e foi surpreendida por duas vezes com a chegada de uma viatura no local, questionando a barreira e orientando que os bloqueios fossem desfeitos. Dois moradores receberam intimação da Delegacia de Polícia Civil de Canudos e prestaram depoimento, na última terça (9/6) sobre o caso.
A mesma precariedade no sistema de saúde motivou que o Quilombo Fazenda Grande Muquém de São Francisco, no oeste baiano, fechasse o acesso a comunidade.“ Fizemos um isolamento na estrada que dá acesso ao quilombo, não paravam de chegar vendedores, ambulantes. Tivemos resistência, mas conseguimos controlar isso”, afirma o morador Pedro Rodrigues, que também explica que os/as moradores/as só tem ido a cidade em casos de extrema necessidade e são orientados para o uso de máscara e álcool em gel. “A gente fica preocupado de acontecer alguma coisa, não temos estrutura nenhuma”, conclui.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário desde 2002, prevê que as comunidades tradicionais tenham o direito à posse e propriedade das terras tradicionais, à consulta prévia, livre e informada, e a proteção do modo tradicional de viver. Nessa perspectiva, a criação de barreiras sanitárias fazem parte da autonomia das comunidades sobre seus territórios.
No Cerrado, em Correntina (BA), os/as ribeirinhos/as têm fortalecido os laços comunitários neste período. “Contamos com o velho sistema de trocas de produtos, um tem, o outro não tem e faz essa troca”, conta Aliene Barbosa, geraizeira e moradora do Povoado Grilo. A partilha é uma das características presentes na tradição de comunidades Fechos de Pasto, como o Grilo, descendentes de indígenas e quilombolas que há séculos compartilham áreas comuns para criação livre de animais de pequeno porte, colheita de frutos e plantio de roças.
Os fechos de pasto do oeste baiano, no MATOPIBA, são marcados por conflitos territoriais com grandes empreendimentos do agronegócio, que se apropriaram, através de grilagem, das terras ocupadas tradicionalmente. As comunidades têm denunciado o roubo de animais por parte de funcionários de fazendas, além disso a circulação de pessoas externas à comunidade e aglomerações em bares circunvizinhos é motivo de preocupação para os/as ribeirinhos/as do Rio Preto.
A mesma prática de troca tem sido presente nas comunidades pesqueiras do baixo sul da Bahia. Impossibilitados de vender o pescado nas praias, restaurantes e bares, os/as pescadores artesanais e marisqueiras também buscaram como alternativa a realização de campanhas emergenciais para coleta de alimentos não perecíveis, materiais de limpeza e itens de higiene.
As campanhas emergências, que têm acontecido por todo Brasil, são importantes ferramentas diante da dificuldade do acesso à renda básica emergencial, especialmente à acessibilidade dos procedimentos de cadastramento via aplicativo e a falta de ações dos governos em atender demandas emergenciais nas comunidades tradicionais.
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Bárbara Ramos, marisqueira da comunidade de Graciosa, em Taperoá (BA)
NÚMEROS E NARRATIVAS - No contexto da pandemia, iniciativas de comunicação popular se destacam como uma importante ferramenta para intercambiar experiências entre os povos tradicionais, dar visibilidade às vozes historicamente silenciadas e denunciar as violações. É o caso do Canal Diálogo com os Povos, da Teia dos Povos, que desde abril tem produz transmissões de diálogos sobre terra e território.
Povos tradicionais, coletivos e organizações também têm feito de forma autônoma o monitoramento dos casos de COVID 19 nos territórios. Entre os dias 4 a 8 de junho o governo brasileiro deixou de disponibilizar os dados cumulativos de pessoas infectadas ou mortas em decorrência da infecção pelo vírus, informações que anteriormente foram marcados pela subnotificação e ainda assim apontaram o Brasil como segundo país em número de mortos no mundo pelo coronavírus. Desde então, veículos de imprensa tem realizado uma estimativa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) têm trabalhado junto às organizações indígenas regionais para coleta e divulgação dos casos. Os últimos dados, publicados no dia 6/6 apontavam que 93 povos já haviam sido atingidos, 2390 indígenas contaminados e 236 óbitos, dados superiores aos registrados pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SESAI) onde se registram, por exemplo, 97 óbitos. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Instituto Socioambiental lançaram o Observatório da Covid-19 nos Quilombos, que tem registrados os casos entre as comunidades quilombolas. Segundo os dados*, já são 619 casos confirmados e 71 mortes, uma média de óbito de mais de um/a quilombola por dia desde o inicio do monitoramento.
Alguns territórios quilombolas específicos estão em situação mais vulnerável, como os da região Norte, sobretudo Pará e Amapá que concentram o maior número de mortes registradas, com oito óbitos de quilombolas cada, segundo a Conaq. Na Bahia, há exemplos de territórios, como Rio dos Macacos, em Simões Filho, e Ilha de Maré, na Baía de Todos-os-Santos, em que há pelo menos 50 casos suspeitos, mas uma precariedade na testagem.
EM TRAMITAÇÃO - Fruto de uma processo intenso de articulação das organizações representativas dos povos tradicionais, o PL 1142/2020 agrega propostas legislativas acerca das medidas de proteção social, prevenção do contágio e disseminação do COVID - 19 nos territórios tradicionais.
“Um importante instrumento previsto neste PL é o Plano Emergencial nos Territórios Indígenas, o qual também se estende para os territórios quilombolas e dos demais povos tradicionais. O Plano estabelece diversas obrigações aos entes públicos (União, Estados, Municípios) de garantir a estes povos direitos básicos, como acesso à água potável, materiais de higiene, limpeza e desinfecção, acesso à saúde, testes rápidos, medicamentos, equipamentos médicos, entre outros elementos. Além disso, prevê também ações no sentido da garantia da segurança alimentar e nutricional dos povos tradicionais”, explica a advogada Joice Silva, integrante da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais ( AATR ).
O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 21 de maio e pode ser votado ainda nesta semana.
*Dados de 15/6
Por Morgana Damásio | ASCOM
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